Apesar de ser celebrado como um importante acontecimento, ato é questionado por historiadores, representantes dos movimentos e pesquisadores
Os livros de história do Brasil
contam que, em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea,
“acabando” com a escravidão no país. Esse trecho da trajetória da nação
brasileira é apresentado aos estudantes ainda nos primeiros anos da escola. Apesar
de ser celebrado como um importante acontecimento que libertou escravos de um
sistema perverso e cruel que deixa marcas até os dias atuais, o ato é
questionado por historiadores, representantes dos movimentos e pesquisadores,
como a comunicóloga e ex-secretária de Cultura do Estado, Eloísa Galdino, que
não considera a princesa Isabel como a principal protagonista da revolução.
“A princesa é uma personagem da
nossa história que acabou por protagonizar um episódio marcante da passagem da
monarquia para a república. Mas seu protagonismo, por tantos anos evidenciado
no ensino da história do Brasil, é apenas uma narrativa historiográfica. Uma
narrativa ‘eurocentrada’ e branca. Nela, heroínas e heróis não possuem pele
negra”, opina Eloísa.
Com início na década de 1530, o
sistema escravocrata durou mais de 350 anos. No entanto, o fim da escravidão
não significou que os negros brasileiros ganhassem dignidade e cidadania.
Segundo dados divulgados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, pretos e
pardos representavam, em 2020, 82% dos 2.400 trabalhadores que recebiam
seguro-desemprego após resgate dos trabalhos escravos. No mesmo ano, 1.054
pessoas foram resgatadas de situações análogas ao trabalho escravo em todo o
Brasil. Dos 267 estabelecimentos fiscalizados, 111 tinham trabalho escravo. Os
negros continuavam sendo os mais afetados pelo trabalho escravo no país.
“Não há surpresa, é constatação
do que eu já disse antes. À população negra foi negado o direito de
pertencimento ao país. Essa população não acessou e não acessa os princípios
elementares da cidadania plena. A violência que exclui é a mesma que reproduz a
si mesma. O estado e os direitos não se apresentam. Mas ele chega para cercear
a liberdade e encarcerar a população negra no sistema prisional que reflete o
país desigual e racista que somos. Mas calma, temos mudado. E mudaremos ainda
mais. Quanto mais falarmos e denunciarmos esse quadro, mais o tencionamos por
mudanças”, pontua a comunicóloga.
Em meio às pressões da época
contra o sistema escravocrata e em defesa da reparação dos direitos da
população negra, Eloísa destaca que outros agentes dos movimentos sociais da
negritude foram fundamentais para alcançar o feito, e que esse reconhecimento
só foi possível graças aos processos constantes de revisão dos marcos
históricos brasileiros feitos por pesquisadores. “Primeiro e mais importante:
revisar a historiografia nos permitiu acolher e colocar no devido lugar
mulheres e homens negros que nunca deixaram de lutar pela liberdade. A lista? O
grande Zumbi dos Palmares, Dandara, Tereza de Benguela, Chico da Matilde, André
Rebouças, Luiz Gama, dentre muitos outros”.
Para Eloísa, a data deve ser
usada como motivo para protestar e clamar pela verdadeira liberdade que somente
será conquistada com mobilização e luta permanente pela cidadania. “A gente
precisa entender que um país fundado no açoite e na violência contra a
população negra carrega em seu DNA o racismo estrutural. Qualquer indicador
socioeconômico mostra a relação entre pobreza e negritude, analfabetismo e
negritude, população em situação de rua e negritude. Quem não quer ver essa
realidade nua e crua?”, questiona.
De acordo com Eloísa, a cidadania
não estará completa até que os brasileiros negros sejam devidamente compensados
para poderem competir em pé de igualdade com os não-negros. “A abolição é um
fato, sem dúvida. A Lei Áurea é fruto de uma luta e de um contexto
sócio-econômico mundial. Mas a lei não possui relação, por exemplo, com o que
apregoava o movimento abolicionista, grande movimento social do país. Às negras
e negros livres, nenhum direito, nada. O movimento falava em indenização,
inserção digna na sociedade. A república - que começou velha - resolveu
indenizar os donos de escravos. A liberdade de fato, é luta cotidiana, até
hoje”, frisou a ex-secretária de Cultura de Sergipe.
|Fonte e foto: Divulgação