OPINIÃO: A construção da narrativa sobre a quizila de Yemanjá no Candomblé

Por Díjna Torres*

Sergipe De Hoje: OPINIÃO: A construção da narrativa sobre a quizila de Yemanjá no Candomblé

Por ser a dona das cabeças, de acordo com a mitologia dos Orixás e história oral passada nos terreiros, Yemanjá é muito associada à proteção, cuidado, paciência e racionalidade na hora de tomar suas decisões, não deixando de lado também o senso de justiça e o instinto vingativo, caso seja contrariada. Muito do que se passa para filhes de santes no Candomblé, é a relação entre as características dos orixás, sejam elas físicas ou psicológicas, e esta relação entre mito, arquétipo e sujeite na maioria das vezes se confunde.

 

Por exemplo, muitas vezes algumas atitudes ou características físicas são atribuídas por causa do Orixá, como afirmar que quem é de Yemanjá geralmente tem vontade de ser mãe, filhas de Iansã devem casar-se com filhos de Xangô, Filhas de Yemanjá se relacionam melhor com pessoas de Oxalá, e tudo isso se baseando nos mitos, como se a história dos Orixás fossem entrelaçadas de alguma forma com a nossa, e nisso entram também as características físicas, como as mulheres de Yemanjá, a depender da qualidade da Orixá, podem ter seios fartos e quadris largos, gostam de ter cabelos longos, ou se curtos, com estilo diferente do casual.


Se são filhas das Yemanjás mais guerreiras, como é o caso de Yemanjá Ogunté ou Fecum (qualidades de Yemanjás mais jovens), o arquétipo é de mulheres altas, magras e esbeltas, e com personalidade mais introspectiva. No meu caso, de Yemanjá Sobá, antes mesmo da confirmação no jogo de búzios, muitas pessoas mais velhas no axé afirmavam que eu era filha de Yemanjá Sobá com Xangô por causa de características físicas como a baixa estatura, coluna mais curvada, cabelos longos, falante e “transparente como as águas” (um pai de santo disse-me uma vez).

 


Além dessas características, algumas pessoas afirmam que uma das quizilas de Yemanjá é a fofoca ou fuxico. Ou seja, geralmente são pessoas que não gostam, mas acabam sendo vítimas de falatórios por conta de sua trajetória ou personalidade inquieta. Muito do que é dito e construído depende da autoria do discurso e da intencionalidade do mesmo, mas nunca há um discurso sem intenção, sem propósito e sem um jogo político por trás dele. A autoria do discurso e para quem ele é dito e feito, depende de quem também irá receber, a pessoa que irá acreditar no que se conta e que irá reproduzir o que foi contado, dessa forma, a fofoca ou fuxico torna-se uma quizila dentro da casa de santo, por disseminar “segredos”, e neste contexto religioso, o segredo, o mistério e o não dito tem um poder e importância extrema para a continuidade e legitimidade das ações e rituais que lá acontecem.

 

Os ruídos na comunicação, a fofoca e o silêncio operam como categorias primordiais dentro desta esfera, e esses ruídos expõem a fragilidade dos sujeitos, uma vez que, de acordo com Veena Das, a palavra tem uma agência em relação à vida e o silêncio que é visível, não é reconhecido dentro deste contexto como a negação do discurso ou a ausência do que o que se quer dizer de fato. No Candomblé, tudo é muito relativo, nada é igual ou impassível de mudanças, a individualidade e a transformação operam constantemente e de maneira relacional, muitas vezes estão tão imbricadas que se confundem, e por isso, há várias formas de interpretação e de utilização do silêncio dentro deste contexto.

 

O silêncio é uma forma de defesa da violência simbólica e opressão que o discurso muitas vezes carrega. Uma situação em que se coloca uma pessoa na posição de traiçoeira ou onde há deduções sem questionamentos, o discurso, nesse sentido, está carregado de relações de poder, de submissão, pressuposições, competição, persuasão convencimento ou objetiva fazer isso. Há ainda o discurso carregado de contradições quando as explicações generalizadas são confrontadas por acontecimentos diversos que não há como premeditar ou evitar, ou, pelo contraste entre o geral e o individual, a exemplo da premissa de que cada Orixá é único como cada indivíduo é único, cada Orixá lida com cada filho ou filha de santo de maneira diferente, única e singular, cada Orixá cobra e dá de acordo com a individualidade e merecimento de cada um, segundo o que aprendi e ouvi na casa.

 

A diversidade do outro, é pela diferença que ele se faz o outro, e isso é característico de todas as comunicações, que em todas há relações assimétricas entre os comunicantes. É melhor pensar em situações não comunicativas, do que utópicas, porque a utopia é ideal e aí já há a assimetria no pensamento. Nesse caso, as narrativas constroem-se a partir das experiências e eventos, mas também trazem a ambiguidade do discurso e toda a subjetividade das relações as quais estão imbricadas nessas experiências e em sua construção.

 


**Díjna Torres é jornalista, doutora em Antropologia Social pela UFSC, mestra em Sociologa pela UFS, pesquisadora na área de Gênero, Parentesco, Performance, Narrativas e Religiões Afro-Brasileiras. Sócio-fundadora da ONG Casa de Mar e Yaô no Ilê Axé Omin Mafé.






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