Dados nacionais, do Estado e do Município de Aracaju expõem drama vivido pela população trans no processo educacional
“A gente não tem muito o que
fazer, né? Até tenho vontade de estudar, de ter uma formação, mas como estar
num lugar que só xinga a gente? Já basta o que passamos na vida, com a família
e sociedade, ainda temos que sofrer num lugar que era para aprender?”.
O desabafo é de Fabíola
Santos, travesti de 19 anos, que mora no interior de Sergipe. Devido a diversos
problemas familiares e também por questões de segurança, seu nome será utilizado
como pseudônimo, assim como de outras duas amigas dela que conversaram com
nossa equipe de reportagem na última semana.
“Eu queria ser enfermeira, mas
larguei a escola na quinta série. Quando comecei a perceber que era diferente e
o povo do colégio também começou a
perceber isso, tudo ficou muito difícil. Eram muitos xingamentos, ofensas. O
tempo todo. Todos os dias. Inclusive, professores ficavam dando ‘lição de
moral’ quase que diariamente. Depois que meus pais descobriram, fui expulsa de
casa e nunca mais voltei para a escola’, revela Carla, de 21 anos.
Abigail, de 23, também passou
por situações semelhantes. E, assim com suas amigas, embora tenha o desejo de
uma formação, vê o ambiente escolar como “zona de tortura psicológica”. “O povo
fala que as coisas mudaram, que hoje é obrigado a respeitar nossas identidades
e nomes, mas, na prática, isso só existe com os professores e profissionais que
trabalham nas escolas. Não há como controlar os alunos. Não há como fazê-los
parar de nos ofender, de querer nos humilhar ou, até mesmo, nos violentar
fisicamente. Na dúvida se está tudo seguro ou não, prefiro continuar como
estou, ganhando meu dinheiro como posso”, afirma.
Em janeiro de 2018, uma
Resolução do Ministério da Educação autorizou o uso do nome social de travestis
e transexuais nos registros escolares da educação básica. Com isso, buscaram-se
maneiras de incluir essas pessoas no processo educacional, focando no respeito
às suas identidades e fomentando o respeito com o objetivo de diminuir as estatísticas
de violências e evasão escolar por parte desse público. Mas o que era para ser uma
ação efetiva, ao que parece, ficou apenas no âmbito do discurso.
Constantemente, essas pessoas
são vítimas de crimes como bullying, assédio, constrangimento e preconceito.
Contudo, a violência sofrida por essas pessoas, infelizmente, não se limita a
essas tipificações. E os números provam isso. Segundo dados do Dossiê dos
Assassinatos e da Violência Contra Pessoas Trans Brasileiras, da Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 140 pessoas trans foram
assassinadas no Brasil em 2021. Deste total, 135 vítimas eram travestis e
mulheres transexuais e cinco eram homens trans e pessoas transmasculinas.
Embora tenha sido menor que no ano anterior (que registrou 175 crimes dessa
natureza), o número foi acima da média desde 2008 que, conforme o relatório, é
de 123,8 homicídios anuais.
Mas qual relação desses
números com a formação escolar? O Brasil é o país com o maior índice de morte
da população trans em todo o mundo. Considerando isto ao fato de que, conforme
levantamento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), estudo referente ao ano de
2019 aponta que 82% dessas pessoas sofrem com a evasão escolar. É possível
observar que, a soma de violências sofridas, juntamente com a falta de
oportunidades no mercado de trabalho – tendo em vista que um estudo feito pela
Antra indica que 90% da população trans no Brasil tem a prostituição como fonte
de renda e única possibilidade de subsistência – e o abandono familiar (quando,
em média, pessoas desse grupo são expulsas de casa aos 13 anos, ainda com base
em estudos da Antra) acabam colocando-as como principais alvos da
criminalidade.
Em Sergipe, essa realidade não
é muito diferente, como está pontuado nos relatos das três jovens. Corroborando
com esses depoimentos, para se ter uma ideia da situação, segundo dados
enviados pela Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura
(Seduc), o estado possui 165.666 mil estudantes, distribuídos em 322 unidades
de ensino. Contudo, somente 17 alunos são pessoas transexuais utilizando-se do
direito ao nome social nos registros escolares. A pasta revela que esses
estudantes estão em 14 escolas da rede. Entretanto, a Seduc explicou que não há
nenhuma política específica para este tema na organização dos trabalhos da
secretaria. “Não há uma política macro na rede voltada para esta temática. O
que há são professores e outros profissionais da equipe escolar interessados em
discutir e garantir esse direito, seja incorporando a discussão em seus
planejamentos de aulas, eventos, etc.; ou na promoção de diálogo com a
comunidade escolar e os pais/responsáveis dos estudantes”, explica.
Para isso, a Seduc informou
que “tem sido ofertado aos professores e equipe gestora das Unidades
Educacionais o Curso Promoção da Cultura De Paz e Direitos Humanos no Ambiente
Escolar que traz entre seus conteúdos o módulo: Olhar de Gênero sobre as
Violências: Aspetos Históricos E Culturais, na modalidade EAD”.
“Mesmo de acordo com a
RESOLUÇÃO CEE/SE – 001 de 2014 - a qual garante que os sistemas de ensino e as
escolas de educação básica brasileiras busquem garantir as diretrizes que tem a
finalidade de combater quaisquer formas de discriminação em função de
orientação sexual e identidade de gênero -, ao possibilitar o nome social aos
que tem a maioridade legal, não se atingiu inteiramente os objetivos de impedir
a evasão escolar, decorrente dos diversos casos de discriminação, assédio e
violência nas escolas em relação a travestis e transexuais, mesmo com as
legislações específicas incorporadas”, pontua a Secretaria.
Entretanto, a Seduc pondera
que a aplicabilidade do nome social se esbarra com uma questão maior: a
aceitação familiar. Por essa razão, possivelmente, muitos alunos trans
continuam com seus registros diferentes às suas identidades. “Estudantes
transexuais e travestis, maiores de 18 anos, podem solicitar o uso do nome
social no ato da matrícula online, através do portal www.seduc.se.gov.br. Se
forem menores de 18 anos precisam da autorização do responsável legal para que
o nome social seja utilizado. Lembramos que o direito à utilização do nome
social na matrícula existe em Sergipe desde o ano de 2014, normatizado pelo
Conselho Estadual de Educação (CEE), via Resolução n° 001/2014; e está
garantido no artigo 5° da Portaria n° 26/2019, que estabelece as normas para a
Matrícula Online”, relata.
A Secretaria ressaltou, ainda,
que não há profissionais específicos para acompanhar esse tipo de processo,
contudo garantiu que existe o acolhimento. “As demandas que chegam estão sempre
vinculadas às questões de violência e/ou demandas no âmbito da educação
socioemocional. Mesmo com a falta de profissionais específicos na área, quando
estas chegam, procura-se acolhe-las, orientá-las e direcioná-las de acordo com
as legislações específicas vigentes”, comenta.
“Consideramos a necessidade de
criação de políticas públicas efetivas, que visem a garantia do direito não só
da utilização do nome social na matrícula, mas à diversidade, à proteção de
crianças e adolescentes e ao inalienável respeito à dignidade humana. Além de
legitimar a importância da criação de projetos e a inserção de profissionais
específicos capacitados para lidarem com às necessidades e às demandas que
norteiam a temática e a violência – infelizmente existente e crescente -,
dirigida às transidentidades”, complementa.
Aracaju
Quando se trata de transexuais
do ensino público de Aracaju, a situação tende a ser ainda mais grave. Isso porque,
segundo informações da Secretaria
Municipal da Educação (Semed), não há nenhum aluno matriculado na rede
municipal que tenha se autodeclarado transexual ou travesti. Seguindo a mesma política
estadual, a pasta relatou que segue as normativas oriundas do MEC e do CNE. “Lembramos,
no entanto, que de acordo com a Resolução Nº01/2018, em seus artigos 3º e 4º,
os estudantes maiores de 18 (dezoito) anos podem solicitar o uso do nome social
durante a matrícula ou a qualquer momento, sem a necessidade de mediação de
quem quer que seja”, disse.
Porém é justamente quando se
trata daqueles menores de idade que os problemas surgem. Por haver a obrigatoriedade
de autorização por parte de seus representantes legais (pais, mães ou
responsáveis), diversos alunos não podem ter acesso a esse direito. “É nessa
etapa que reside a maior dificuldade, pois muitos familiares apresentam grande
resistência a fazer essa adequação, mesmo após diálogos com a rede
intersetorial de proteção à criança e ao adolescente”, comenta.
No entanto, para combater a
intolerância e as violências contra os grupos ou segmentos sociais taxados como
diferentes, a Secretaria garante que vem desenvolvendo, desde 2017, uma série
de ações educativas e projetos pedagógicos. “São rodas de conversa nas escolas
sobre sexualidade e gênero, com aceitação positiva por parte de profissionais e
estudantes. A formulação dessas iniciativas conta com estratégias como o diálogo
com os movimentos sociais, adequação da linguagem e propositura de atividades
dinâmicas que reforcem o respeito aos direitos humanos e a cultura de paz”, esclarece.
Histórico de exclusão
As questões pontuadas pelas
jovens no início da reportagem são, segundo a vereadora Linda Brasil (PSOL),
parte do histórico de exclusão, violência e invisibilidade da população trans
no Brasil. “Isso tem a ver com a questão da educação, não só da educação formal
(a da escola), como também a educação geral, que a gente passa em relação aos
nossos filhos, essas expectativas que a gente tem. A transfobia, por ser
estrutural, acaba acarretando uma exclusão muito grande das escolas por várias
questões, tem a ver com o desrespeito no âmbito social, a falta de capacitação
e informações, não só dos professores, mas de toda comunidade escolar em
questões que envolvem o que é a orientação sexual e a identidade de gênero,
além de debates sobre gênero e diversidade sexual. Então são várias questões
que acabam gerando tanta exclusão e tanta falta de acesso à educação para a
população trans no Brasil, em Sergipe e consequentemente em nossa cidade”,
explica.
A parlamentar acredita que
essa situação parte do contexto cultural e, também, do âmbito das gestões
públicas. “É uma questão geral, uma questão cultural da nossa sociedade e são
várias questões que fazem com que a gente sofra tanta evasão, tanta dificuldade
de acesso à uma educação. Além da questão estrutural, existe o descumprimento
de legislações que já garantem dentro dos debates transversais essas discussões
tão importantes, não só em sala de aula, mas nas grades curriculares, nas
formações, seja nos cursos gerais de todos os profissionais que tenham acesso
ao público, pois seria muito importante todos os profissionais terem uma
formação nesse sentido para provocar mais sensibilização e desconstrução sobre
estigmas e estereótipos em relação à comunidade trans”, dispara.
Para que haja mudança nesse
quadro, Linda defende um maior investimento em políticas públicas de acesso à
informação, amplitude no conhecimento dos temas e enfrentamento à proliferação
de notícias falsas. “Nós estamos passando por um momento muito difícil com as
fake news e as distorções das nossas pautas estão cada vez mais fortes, então a
gente precisa ter um empenho do Estado em levar informação para sociedade sobre
a importância de discutir essas pautas, sejam elas nos ambientes familiar,
escolar, profissional, como também diminuir a violência, diminuir esses dados
estatísticos tão alarmantes com a população trans, que coloca o Brasil como o
país que mais mata pessoas trans no mundo. Nossa expectativa de vida é de 35
anos e 90% das mulheres trans, justamente por falta de acesso à educação, da
continuidade na educação, acabam tendo a prostituição como a única forma de
sobrevivência. Então, é preciso levar esse debate para a sociedade e criar
políticas públicas que levem essa conscientização e capacitação para todos os
profissionais envolvidos, não só na escola, mas também em outras repartições”,
detalha.
“As escolas também precisam
fazer um trabalho com as famílias, porque muitas pessoas trans e LGBTQIA+, que
já sofrem a violência nas ruas e nas escolas, também sofrem dentro do ambiente
familiar e essas violências geram não só essas violências escolares, mas também
baixo autoestima, o que acaba prejudicando a saúde mental e a população. De
acordo com dados estatísticos, essas pessoas têm três vezes mais potencialidade
de cometer suicídio por causa dessa falta de acolhimento, entendimento e falta
de respeito às suas identidades”, complementa.
Atuação política
A vereadora discorre sobre o
trabalho que vem realizando neste sentido na Câmara Municipal de Aracaju (CMA)
e em demais setores da sociedade. “Temos feito várias ações, tanto dentro do
Parlamento Municipal, protocolando Projetos de Lei, como o projeto que institui
a Semana da Visibilidade Trans no município, que é uma ação muito importante
para levar esse debate em toda sociedade, principalmente nas escolas, que é um
projeto ligado à Universidade Federal de Sergipe, a OAB, o Conselho Regional de
Psicologia junto com os movimentos sociais. A gente também sempre está indo às
escolas levar esses debates, falar com a direção sobre o respeito do uso do
nome social, do banheiro de acordo com o gênero, pois temos recebido várias
denúncias de alunos que têm esses direitos negados e a gente leva essas
demandas para Secretaria Municipal de Educação para poder melhorar essas
situações. Mesmo com iniciativas com uso do nome social no cadastro da
Secretaria Municipal nas escolas,
percebemos que existe, mas ele não funciona como deveria porque a
relação onde os professores fazem a chamada sai o nome do registro e ai acaba
não tendo uma efetividade como deveria”, expõe.
Além disso, a parlamentar
também revelou que protocolou um Projeto que reconstitui a campanha de combate
ao machismo e a valorização do protagonismo das mulheres nas escolas. “Quando
instituímos essa questão, falamos de todas as mulheres, sejam negras, da periferia,
trans. Essas iniciativas são muito importantes para que possamos potencializar
esses debates no espaço escolar. E, com isso, também acabamos fazendo uma
parceria com os movimentos sociais para fortalecê-los através de iniciativas e
eventos que levem essas discussões, convidando professores e professoras,
diretores, sociedade civil para debater sobre esses dados tão alarmantes que
sofremos aqui no Brasil. Acreditamos que a base tem a ver com essa exclusão,
seja familiar ou escolar, que acaba gerando uma exclusão social da população
trans”, finaliza.
|Por John Santana/Da equipe De
Hoje
||Fotos: Ilustração/Ascom/Semed/Gilton Rosas/CMA