OPINIÃO: ‘Medida Provisória’ mira num futuro distópico e acerta no Brasil intolerante e negacionista de 2022

Por Thiarlley Valadares*


Contém spoilers


O filme nacional ‘Medida Provisória’ chegou aos cinemas na última quinta-feira, 14, e a trajetória até a sua exibição não foi nada fácil. Dirigido por Lázaro Ramos e com grandes nomes nacionais e internacionais no elenco, o longa teve sua estreia adiada em dois anos em meio a diversos boicotes e a pandemia de Covid-19.


Na trama, nós acompanhamos Antônio (Alfred Enoch), sua esposa Capitu (Taís Araújo) e seu primo André (Seu Jorge), vivendo suas vidas dentro do possível sendo jovens de 'melanina acentuada' num país como o Brasil. Pessoas de classe média, são os únicos negros do prédio que vivem e os olhares questionadores sobre a presença deles naquele lugar é sempre evidenciado.


Duas coisas precisam ser ressaltadas: a primeira é que o longa se inicia trazendo a normalidade da vida de pessoas pretas, o que é incomum em filmes do mesmo molde, que costumam focar unicamente na dor. Traz sofrimento, sim, seja pelos olhares de quem não aceita a presença deles ali, seja pelo confronto que é comum na vida daqueles que questionam as atitudes dos brancos, mas o sofrimento não é a única coisa que ronda a vida dos personagens. A segunda é que o filme foge da ideia de um, nas palavras do próprio diretor em entrevista ao Roda Viva da TV Cultura, 'favela movie', quebrando a história única de que pretos só se encaixam em posições de inferioridade. Não à toa, os personagens principais são todos graduados: Antônio, advogado; Capitu, médica e André, jornalista.



E essa normalidade dentro do possível é quebrada quando uma Medida Provisória 1888 — em clara referência ao ano da abolição e no enredo, não ironicamente, é determinada no dia 13 de maio, dia da anulação da escravidão — prevê que todos os cidadãos brasileiros que lembrem, mesmo que de longe, ascendência africana, devem retornar para a África. Há uma cena emblemática onde a inspetora Isabel (Adriana Esteves) lê a medida para dois dos seguranças que trabalhavam para ela. A câmera se aproxima do segurança negro, o temor em seus olhos, enquanto o, até segundos antes, colega de trabalho, sorri satisfeito ao segurá-lo com força.


E, assim, como nos períodos de escravidão, o povo preto é retirado a força de seus lares, famílias, vivências e raízes, e levados para uma realidade que não conhecem, não querem e não têm escolha. Muitos são mortos no processo, mas o desdém e o desinteresse do 'Ministério da Devolução' são muito claros: é mais barato lidar com um cadáver do que ter o trabalho de mandá-los embora. Todos os caminhos são aceitáveis na tentativa de fazer o "Brasil branco de novo".



O filme, que brinca entre comédia, thriller e drama, traz um misto de sensações desde a risada pela piada tão atual, a identificação — seja pelas dores dos personagens, seja pelo absurdo que vai se estalando aos poucos, diante dos nossos olhos e que em nada podemos fazer — e, talvez a pior delas, que é o desamparo. A sensação de pequenez ao perceber que a realidade daquela violência não está muito longe num país em que um jovem negro é morto a cada 23 minutos.


Dentre várias cenas significativas, uma delas chama atenção: quando, no desespero de conseguir circular livremente, o personagem André pinta o rosto de branco. A cena, que se sustenta sem diálogo, atinge uma dor de todos nós que, na infância e adolescência, já sonhamos em sermos brancos e termos o privilégio que a cor mais clara poderia nos oferecer.


O longa toca na ferida ao trabalhar temas como disseminação de fake news, relacionamentos interraciais e a fábrica de memes que o país se tornou em meio a perversidade que vive desde o golpe de 2016. Golpe este, inclusive, relembrado na votação pela Medida Provisória, tão chacota quanto foi a nossa realidade, seis anos atrás.


"Como é que a gente riu disso?" é dito por André e traz a reflexão de como optamos pela piada ao invés do confronto. É fato que temas importantes são discutidos e questionados através de memes, mas qual o limite da piada? Será que empurrando as coisas com a barriga e pensando que ninguém vai levar a sério são a melhor saída? Essa coisa toda não te lembrou um possível candidato que ganhou palco através de vídeos "meme", sempre ridicularizado e ignorado que, no fim, ganhou o poder?


Por fim, a briga pela sobrevivência tem sido dentro e fora das telas. Mesmo com nomes de peso na produção e elenco e tendo lotado salas em todo o país até o momento, ‘Medida Provisória’ luta para ser exibido nos cinemas do Brasil, tendo apenas 150 salas disponíveis no país todo, correndo o risco de ficar apenas uma semana em cartaz. Enquanto isso, produções estrangeiras como Sonic 2 (Paramount Pictures) e Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore (Warner Bors) possuem mais de mil salas cada um.


Com Elza Soares, Baco Exu do Blues, Ricon Sapiência e Agnes Nunes na trilha sonora, 'Medida Provisória' escancara uma ferida aberta no nosso país e que precisa ser discutida antes que a barbárie nos atinja — ainda mais. O enredo, que mira num futuro distópico, acerta no Brasil intolerante e negacionista de 2022. E, em meio as dores de um país que nega sua história, sugere a utopia do afeto como alento em tanta dor.





Thiarlley Valadares é escritora, jornalista, especialista em História e Cultura Afrobrasileira e Comunicação na Pós-Mordernidade. É autora dos livros ‘Amor em lugares fechados’, ‘Apenas Fugindo: o livro’ e ‘O Bom Soldado’. | Acesse: http://apenasfugindo.com






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